10.18.2017

Não queria esta família.

Mãe para um lado, pai para o outro. Nunca mais se falaram. Avó que me ensinou a amar e que falece aos meus seis anos. Avô que vai falecendo e que vou assistindo aos fins-de-semana na casa dele enquanto estava com o meu pai. Outra avó, que ainda hoje me veio a voz dela à cabeça (a forma como me chamava e me dizia olá e não só os piparotes na cabeça que me doiam por ter as unhas grandes). 

Natais em que o dia 24 era cheio de família (que grande parte nunca me senti muito ligada, antes pelo contrário) e o dia 25 que deixou de existir com o pai vá-se lá saber porquê. Aniversário do pai também desapareceu, deixei de poder estar. Só um telefonema, tal como no Natal. Dia 25 na casa da família de um pai que me acolheu. Pessoas que mal sei o nome, por não ter relação, mas que me trataram tão bem. 

Natais rápidos de muita gente que de muitas maneiras mostrava que não queria mais ou que não queria estar. Aniversários esquisitos. Páscoas desconfortáveis onde o meu refúgio - e mesmo assim, houve alturas em que me foi tirado - era o meu quarto. 

Gritos. Discussões. Eu fazer de mensageira. Indirectas. "Porque é que não pedes ao teu pai?". "A tua mãe é isto e aquilo". 

Sem relação. Sem poder quebrar por sentir que era amparada. Quando a obrigatoriedade cai, vêm os afectos, a realidade. 

E a verdade é que quem se gosta não se junta só porque tem que ser. 

Eu não queria esta família. 

Apesar. Apesar de ainda ontem ter visto no meu irmão a frescura e beleza de quem não sentiu os cortes na pele. Sorria. Lindo. Anjo de luz. A iluminar. A fazer o coração de todos a funcionar. O João, que me recebeu, que apareceu sempre no último momento. No último momento que me salvou por não ter mais ninguém. Aquele último momento onde a culpa me fazia sentir que tudo o que havia mal no mundo era por eu não ser suficiente aos olhos de quem não me parecia amar. 

Tudo o resto, injustamente mas naturalmente, enterrado algures. Enterrado com tristeza, amargura, solidão, medo. 

Não queria esta família. 

Mas.

Mas, quando entro no carro com a Irene, antes de me sentar no lugar do condutor, bafejo o vidro dela e desenho um coração como o meu pai me desenhava quando a minha mãe me levava para longe com ela, porque "tinha que ser". 

Mas, quando no outro dia olhei para a Irene vi que o nariz dela parece um bico de passarinho e, como a minha mãe me fazia, pus-lhe o dedo horizontalmente por baixo e disse-lhe "descansa o bico". 

Mas, quando ontem fui adormecê-la li o livro que a minha avó que me ensinou a amar e a brincar me deu. 

O livro em que ela escreveu uma dedicatória talvez por saber já que me ia deixar tão cedo. O livro onde até escreveu à mão os números para eu saber também como se escreve à mão. 

Que cuidado. Que carinho.










E hoje, hoje veio a voz da minha outra avó querida quando me dizia "Olá" e punha Rosa à frente do meu nome. Nunca gostei, mas hoje tive saudades, muitas. 


Pior é quando se tem saudades do que ainda existe e parece que temos as mãos agarradas ao coração que, se o largarmos, se parte. 


Não queria esta família, mas é esta família que fez com que consiga partilhar convosco o que sinto, para que todos sintamos mais, sejamos mais e percamos menos. 

Todos os dias. 

Irene
Tenho um coração onde tu cabes e onde te podes espreguiçar à vontade.

a Mãe está aqui.


Obrigada, mãe, por teres guardado o livro da avó Irene.


a Mãe é que sabe Instagram


30 comentários:

  1. Como te entendo, em cada palavra e sentimento. Mas hoje, ainda hoje, sinto a falta de um irmão. Somos todos sobreviventes e resultado das nossas histórias, vivências e das nossas famílias mais ou menos perfeitas. Um grande beijinho.

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  2. Como te sinto Joana. Já passou. A Irene tem uma sorte imensa por te ter. Beijinhos para as duas :)

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  3. Que lindo texto que me fez chorar

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  4. Também não queria a família que tenho, juntos e desavindos. :( :( :(

    A separação não lhes passa pela cabeça. Na minha, passa muita ansiedade e abriga muitos traumas. Disfarço isto todos os dias e ninguém, excepto o meu companheiro, imagina o que aqui vos conto.

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  5. Joana não imaginas como desejava que a dada altura os meus pais se tivessem separado!
    Teria tudo sido mais fácil.

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  6. Tão bonito Joana. Beijinhos!

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  7. Fiquei com a lágrima ao canto do olho... Bonito texto, Joana. Beijinho :-*

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  8. Não percebi nada do texto. Que confusão.

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    1. É normal. Os níveis de iliteracia são ainda bastante elevados no nosso país. Invista nisso, ainda vai a tempo.

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    2. Você também nunca percebe nada. Valha-me deus mulher!?!?

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    3. Anónima das 16:23 obrigada pela enorme gargalhada que me proporcionou. E só porque me fez rir muito até lhe desejo uma boa quinta feira.

      Ass: anónimo do 12:10

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    4. Eu sou outra anônima mas partilho da opinião da anônima .. não percebi nada .. uma confusão este texto.

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  9. Como te entendo Joana, adoro os teus textos, a cada palavra, a cada sentimento, a mesma realidade do que estou a passar, também estava longe de imaginar que fosse comigo, que fosse esta a minha família. E tal como tu tive o privilégio de ter uma avó Irene que me ensinou tanto, principalmente pela simples forma de amar um ser incondicionalmente sem querer nada em troca e é isso que fazes com a Irene e eu com a minha Inês.
    Simples, Amor de mãe incondicional, sem fim, tudo pelas nossas filhas!
    Beijinhos,
    Cátia

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  10. Muita força e muita coragem! A melhor dádiva de Deus é sermos mãe❤

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  11. Que post tão bonito e enternecedor. Dizes muito mais do que aquilo que é possível transmitir em palavras. Parabéns, Joana. Parabéns.

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  12. Joaninha querida <3 texto maravilhoso, de fazer lagriminha aparecer. O pormenor do nome. As guerras por que passaste e que ajudaram a construir a maravilhosa, atenta mãe que és. Um grande beijinho para ti e a tua Irene.

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  13. Joana, como tu, tantas Joanas por este mundo. E mesmo assim acabaste de reunir por este mundo, com o teu texto, todas as Joanas possíveis.

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  14. Isabel G.1:16 da tarde

    Devia ser obrigatório todos termos tido "aquela avó". Eu sou uma sortuda: também tive a minha avó do coração até aos 14 anos. 21 anos passaram desde que ela partiu e não há 1 dia que não pense nela! <3 Dava tudo para que a minha filha pudesse conhecê-la...mas as memórias estão cá todas, por isso vou conseguindo assim ligar a minha filha á minha avó. Adorei o texto Joana Gama, muito obrigado.

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  15. Texto muito sentido e comovente! Lindo!
    Que sorte tem a Irene por ter uma mãe tão atenta a tudo o que tem a ver com ela, com tanta sensibilidade e meiguice!

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  16. Que lindo texto... adorei

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  17. Gostei tanto. Tão lindo, tão triste, mas a nossa história é feito disto.
    Parabéns pela leveza de palavras.

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  18. Não me acredito...
    A tua avó tinha o nome da minha e por isso é que puseste o nome à tua filha...
    Sabes que a minha Bo Irene também era muito especial e as tuas palavras tocaram-me muito. Ela faleceu faz dia 26 de dezembro 2 anos, tinha eu 20 anos...
    Ainda hoje sinto tanto, mas tanto a falta dela. Ela vivia comigo e as palavras dela fazem muita falta mesmo...

    Também penso nesse nome para futuramente uma eventual filha que venha a ter.

    Muitos beijinhos

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  19. Gostei muito deste texto que há-de ter sido difícil de escrever mas que tem um efeito muito poderoso. Tal como eu, muitas pessoas devem estar a sentir que não estão sozinhas. E isso, de certa forma, deixa-nos um aconchego na alma e dá-nos mais força e coragem.
    Sentimos que apesar de termos sido quebradas a determinada altura porque quem não nos soube amar (com certeza que todos os pais amam os filhos mas, muitas vezes, não o sabem fazer) é possível criarmos amor em nós e darmos todo esse amor aos nossos filhos (e a outras pessoas também).
    Eu ainda estou em processo de "cura" da minha infância e juventude, aquela fase que normalmente é a mais feliz da vida das pessoas e foi a pior da minha. Mas, a determinada altura, deixei de pensar nos pais que queria ter e a pensar na mãe que queria ser para as minhas filhas.
    E, no fundo, é isso que importa.
    Muita força para quem tem a coragem de ser diferente daquilo que aprendeu a ser e a fazer sempre melhor.

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  20. Esta capacidade de nos integrarmos e relacionarmos com os outros, com a sociedade em geral, com famílias que não as nossas, com os outros que não a nossa gente, a dificuldade em nos adaptarmos às mudanças e nos sentirmos bem no mundo que nos envolve em aceitarmos e conseguir viver com o barulho e frenético que nos rodeia e que nos leva a ter comportamentos estranhos aos olhos dos outros. As crianças de hoje em dia levam logo com um carimbo de distúrbio do espectro autista e quanto mais leio e investigo sobre o assunto, quanto mais pessoas conheço, mais acho que temos tanto adulto Asperger não diagnosticado entre os adultos que nos rodeiam. E se eles conseguiram construir uma vida, uma família, sobreviver à sociedade de há 20/30 anos atrás, as nossas crianças também conseguirão.

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    1. Como mãe de uma criança diagnosticada com PEA (perturbação do espetro do autismo) posso dizer-lhe que a manifestação deste distúrbio vai muito além da "dificuldade em nos adaptarmos às mudanças e nos sentirmos bem no mundo, etc, etc".
      Tenho 3 filhos. cada um tem o seu feitio, a sua maneira de ser e as suas características. Posso dizer que desde muito cedo percebemos que havia qualquer coisa de diferente com este filho. E não era a dificuldade de adaptação, ou a reacção ao ruído. Era por exemplo, com 1 ano de idade ignorar por completo a existência dos pais e dos irmãos, não reagir a nada, olhar sempre para o infinito, nunca conseguir que nos olhasse nos olhos, que sorrisse. Não se deixar tocar por ninguém, ser completamente impossível dar-lhe a mão ou agarra-lo de alguma forma. Quem vir uma criança com autismo a debater-se para não ser tocada percebe que aquilo não é uma simples birra. E há tanta, mas tanta coisa mais. Algumas vão esbatendo-se com o crescimento, outras acentuam-se ainda mais e outras novas aparecem.
      Não tenha essa ligeireza toda a falar de problemas tão sérios e tão profundo como perturbações do espetro do autismo. É ofensivo para quem tem de lidar com isso todos os dias.

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    2. Também lido com uma filha e tb um sobrinho asperger todos os dias... Não é fácil mas construímos a nossa família em torno das limitações, ensinamos e aprendemos a ultrapassar obstáculos, a melhor maneira de viver com eles é estamos crentes de os estar a preparar assim da melhor forma para a vida adulta. As minhas desculpas se foi ofensivo.

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  21. Porque a família é mesmo isso...uma confusão reconfortante...espero continuar a ler mais textos destes...porqie são lindos e nos tocam na alma... obrigada Joana por está partilha de emoções. Bjs Sandra Gonçalves

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  22. Lindíssimo texto!! Comovente!! Parabéns!! Adoro a sua escrita!

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