Estou sempre a pensar em maneiras de vos animar a noite. Achei que este post vinha a calhar.
É mentira.
No outro dia, quando fui passar férias com a minha melhor amiga a Armação de Pêra, num dos últimos dias decidimos ir dar um longo passeio pela praia. Sem levar telemóveis. Fizemos praticamente a praia toda. Soube-nos bem. Cantámos, dançámos, conversamos e, por fim, tivemos de parar um pouco por me doer um pé.
Quando nos sentamos, no pareo que a minha amiga tinha comprado numa das lojas preferidas dela em Armação, olhámos para as gaivotas bebés que voavam por cima de nós. Ainda a aprender a voar, isto sob um wallpaper natural perfeito: um pôr do sol em cima do mar, um espelho.
Não nos poupámos às palavras nestas férias. Depois de ter sido mãe, de me ter casado e tudo o resto, ainda que a nossa amizade tenha perdurado, o formato foi-se moldando. Chamavamo-nos de namoradas antes, ainda que nunca tenha havido nada entre nós nem qualquer tipo de atracção.
Como não tenho irmãs é um pouco fora de mão para mim estar a dizer que é "como se fosse ter uma irmã", mas é mais do que isso. A família - por vezes - poderá dar-nos algum conforto no sentido em que sabemos que teremos para sempre um laço que nos ligue e que nos faça voltar mas neste caso não. Neste caso, construímos mesmo a nossa relação tendo por base preferência, amor e respeito. Sendo que recentemente aprendi que um é indissociável do outro. Lição aprendida.
Sentámo-nos no pareo. E, mais uma vez, não nos poupámos às palavras. Não me poupei eu. Apesar da Susana e eu sempre nos termos dito que nos amávamos, sinto que só agora estou a compreender a magnitude e a sorte de nos termos uma à outra. Somos perenes.
Sentei-me. Parei. Sem telemóvel. Ao lado da minha melhor amiga. E expliquei-lhe que estava a tentar absorver tudo o que estava a ver e a sentir. Tinha a perfeita noção, a certeza, de que este seria um dos melhores momentos da minha vida, ali.
Expliquei-lhe o quão grata estou por nos amarmos tanto assim, por toda a história que partilhámos juntas e que tenho a certeza que nunca nos iremos perder. Que bom sentir isto.
Que bom sentir isto porque ainda me lembro. O meu corpo ainda se lembra. Ainda que o meu cérebro, para funcionar, tenha criado algumas gavetas, tenha racionado memórias e tenha tido a capacidade de me ir apresentado o que preciso de processar devagarinho.
Grande parte da minha vida foi sentida como uma corrida. Um acto de sobrevivência. Compreendo que tal não seja compreendido por muitos por nunca me ter faltado onde dormir, roupa lavada, comida e até bons colégios. Por alguma razão ou - outra lição aprendida - por várias razões senti tudo muito à flôr da pele. Tanto, tanto que, às tantas, deixei de sentir. Senti tanto que a minha única ferramenta foi desligar-me de tudo.
A única coisa que era capaz de sentir e que me fazia sentir viva era a tristeza, a dor, a mágoa e o abandono. Tudo junto dá uma tristeza gigante. Ainda para mais na cabeça de alguém que, por estar focada na corrida, na sobrevivência, não conseguia sentar-se num pareo na praia e fazer uma digestão do que poderia estar a entupir-lhe o coração.
Lembro-me que durante muito tempo (sendo que qualquer pouco tempo a sentir isto será muito) quis morrer. Vou explicar-me melhor: não queria sair da cama, só queria dormir, não conseguia sentir prazer em nada, apenas medo e dor.
Mesmo as coisas boas que me rodeavam ou as sortes a que sentia ter direito me passavam completamente ao lado. Tornando-se até, por vezes, maldições em vez de coisas boas. Eram mais coisas com as quais teria que lidar e sozinha. Sempre sozinha. Porque por sentir tudo na pele como sempre senti e não conhecer mais ninguém como eu, também me sentia estragada.
Viver era um tormento e não uma dádiva. O tempo passava rápido demais por não sentir nada de bom com ele e lento demais para quem queria um dia estar bem.
O que pensei para continuar a corrida foi "um dia, se não quiser mais... mato-me". Sabia que, ao final do dia, da semana, dos exames, o quer que fosse, teria sempre essa opção. Não era obrigada a suportar mais do que conseguisse. Não tinha que enfrentar todas essas emoções sozinha para sempre. Por isso "vou esforçar-me ao máximo", mas tendo consciência que, se quiser, um dia, ponho um fim a isto. Talvez fosse o medo também a falar mais alto e a querer procurar algum controlo.
Era real, porém. Por duas vezes ia tendo dois desastres grandes de carro: num deles ia caíndo num buraco gigante que tinham aberto para fazer um prédio na Amadora e noutro na A5 na entrada para Caxias, aquela curva a 90º. Em qualquer uma das duas, quando estava prestes a embater (nunca cheguei, tentei sempre virar o carro e travar) senti que o meu corpo e cabeça estavam em sintonia: "se morrer, morro tranquila, pode ser". Não um tranquila de "fiz tudo o que tinha a fazer", mas mais numa de "ok, óptimo, já está, posso sair".
Fui-me arrastando, o melhor que soube. Usando sentido de humor, lidando com a ansiedade o melhor que conseguia e podia, sentindo-me sempre estragada. Não havia mais ninguém como eu. E sei também (ou julgo que sei) que pessoas que se sintam assim raramente têm os ouvidos e os olhos limpos para conseguir ver algo mais para além de nós mesmos. Isto é, mesmo que existisse mais alguém como eu, seria incapaz de a ver. Estaria destinada a sentir-me sozinha para sempre. Mesmo entre namorados, algumas saídas com amigos, cafés no bar da faculdade, tudo.
Um dia estive noutra situação em que senti que podia morrer num desastre de automóvel. Na volta seriam só toques ou mazelas superficiais mas a minha cabeça pintou a morte como das outras vezes. Dessa vez já não senti o mesmo. Senti o contrário. Senti "não quero morrer, não quero mesmo morrer".
Arde-me agora o nariz por estar a começar a chorar.
Quase que não me lembro do percurso até esse dia. Não me esqueço do trabalho sobre suicídio que escrevi na faculdade. Lembro-me deste sentimento e pensamento: "não querro morrer, mesmo".
Depois de me desviar ou de me salvar ou de deixar de estar em perigo chorei. Chorei imenso e ri. Imagem excelente do que é estar insana, mas nunca me tinha sentido tão sã na vida. Afinal queria viver. Agora quero.
E agora sou capaz de sentir os melhores momentos da minha vida enquanto acontecem e não como culpabilidade à posteriori por não os ter conseguido sentir, por não ter estado presente.
Ainda que a primeira parte da minha vida tenha sido sentida assim com toda esta dor, acabei por receber uma grande biblioteca de emoções negativas que também me tornam capaz de sentir grata e feliz hoje.
Orgulho-me de sempre, mesmo quando totalmente perdida, me ter orientado para a luz (não essa, mas esta que sinto hoje).
E este blog também faz parte do processo. Tal como a psicanálise. Tal como a pesquisa sobre como ter referências para educar e amar a Irene. O yoga, o pilates, a natação, a alimentação, os treinos, os amigos, o amor, a comédia.
Só quando somos tudo o que somos é que nos sentimos por completo.
On my way. Everyday.
Duvido que alguém tenha lido até aqui, mas só a partilha já me alegra. <3