Por muito estranho que isto pareça, a Irene já tem um diário. Com código e tudo. Foi uma exigência dela.
Sei que andou a passear com uma das avós no outro dia e viu um diário num centro comercial. Chegou a casa e pediu-me um. Como sempre que acho o pedido razoável digo: “em princípio sim, se vir algum, vou comprar”.
Comprei e tem sido uma paixão enorme. Faz sentido que também tenha interesse no diário (embora inicialmente nem sequer soubesse para que serve) porque começa a treinar as primeiras letras. Já sabe praticamente escrever o seu nome (andou a escrever M em vez de N e nem reparei, teve de ser o pai, haha), mas pouco mais. De resto tem-me pedido para que eu escreva coisas de maneira a que ela consiga imitar. Tão giro. Nunca tinha presenciado este início de escrita. Começou com a lista de compras, ser ela a pedir um bloquinho para fazer a lista e agora quer um diário. Giro.
Partilhou o código com uma amiga, a Constança. Gostam muito uma da outra. Ao ponto de ter sido a única a quem ela revelou o código. Relembro que nem ela sabia para que servia o diário. Aos 5 anos quis ter algo seu, que parecesse secreto, embora ainda sem segredos para lá escrever. Digo eu, mas na volta já terá os seus. Como quando diz foi fazer xixi e não fez. Gira.
Lembrei-me que fui muito de ter diários. E, pelos vistos, continuo a ter. Este blog é uma espécie disso mesmo. Fui tendo diários desde que me lembro. E houve um, pelo menos, que chegou a ser lido. Não tinha código nem cadeado. Um psicólogo diria que eu queria ser apanhada, mas nem por isso. Escondia-o como um caderno normal entre os meus livros ou, numa fase posterior, debaixo da última gaveta da minha secretária.
Lerem-me o diário foi horrível para mim. Muito menos eu ter que saber que o fizeram, ter sido confrontada com isso. Creio que falava muito dos rapazes por quem estava apaixonada e com quem namorava. E talvez tenha sido daí que tenham tirado a conclusão que eu não pudesse ir de férias para o campo de férias naquele ano por ser “muito arisca com os rapazes”. Ou anos depois, não sei.
Nunca cheguei a ir ver o que queria dizer. Fui ver e ainda não compreendo. Sempre entendi que quisesse dizer “badalhoca” ou algo do género. Diz aqui que não corresponde “aos bons modos”. Na volta tem a ver com isso, não sei.
Agora sei o que me levava tanto a querer que gostassem de mim. Continuo a querer, olhem eu: escrevo um blog, faço vídeos, sou comediante... Está cá tudo na mesma.
Sei que estava no quinto ou no sexto ano. O meu caderno tinha uma fotografia dos Offspring na capa e na contra-capa. Impressa numa impressora já com falta de tinta amarela, então estava tudo azul ou lá o que era.
Não gostei da sensação de me terem lido o diário. Senti que a minha privacidade não era algo a ter em conta. Como se de alguma forma não estivesse segura sequer a pensar, na minha própria intimidade.
Se precisasse de ler o diário da minha filha, lê-lo-ia? Sendo completamente honesta, só tenho a certeza de uma coisa: se o lesse, ela nunca iria saber. Nunca lhe diria isso. Nunca a faria sentir-se violada dessa forma.
Se calhar sou péssima na mesma, mas pondo-me numa situação em que falar com a minha filha fosse impossível (por eu ser incapaz ou por ter uma relação com ela que se baseasse em medo e controlo), talvez lesse o diário, sim.
Não sei se aos 15 leria. Não sei se aos 16. Aos 17 muito menos. Sei que se estivesse extremamente preocupada que talvez fosse ler o diário dela.
Agora digo-vos, seria a minha derradeira tentativa. Só depois de tentar tudo. Desde questionar a minha forma de educar e amar, a tentar criar uma estratégia de apoio para a minha filha e para a família, a educar-me ao máximo, a tentar incluir outros players no jogo, a deixá-la em paz... Seria apenas na base do desespero TOTAL. E só porque confio em mim ao ponto de saber que o que leria não seria julgado nem alimentado com medo. Seria sim informação para a ajudar melhor e à família.
As mães são capazes de coisas extremas, mas têm de estar centradas.
Eu acabei por escrever os meus diários em DOS. Tive de me educar a criar documentos sem ser em windows e protegê-los com uma password para ter direito a algum ar livre. A poder processar as coisas, mas sempre a medo. Em tudo.
Às tantas creio que a noção de privacidade se alterou em mim e vejo o quão libertador é dizer-se a verdade. Não por haver quem diga a mentira, mas a transparência e ser-se tão genuíno quanto se sabe ser traz uma música muito mais saudável ao mundo. Trazendo amor, compaixão e começando por nós mesmos.
Quero muito nunca ter que ler o diário da Irene (quando ela souber escrever, vá). E todos os dias faço o melhor que sei. Tal como sei que os meus pais, dentro do que têm para me dar, também fazem o mesmo.
E vocês? Leriam o diário dos vossos filhos?