Mãe para um lado, pai para o outro. Nunca mais se falaram. Avó que me ensinou a amar e que falece aos meus seis anos. Avô que vai falecendo e que vou assistindo aos fins-de-semana na casa dele enquanto estava com o meu pai. Outra avó, que ainda hoje me veio a voz dela à cabeça (a forma como me chamava e me dizia olá e não só os piparotes na cabeça que me doiam por ter as unhas grandes).
Natais em que o dia 24 era cheio de família (que grande parte nunca me senti muito ligada, antes pelo contrário) e o dia 25 que deixou de existir com o pai vá-se lá saber porquê. Aniversário do pai também desapareceu, deixei de poder estar. Só um telefonema, tal como no Natal. Dia 25 na casa da família de um pai que me acolheu. Pessoas que mal sei o nome, por não ter relação, mas que me trataram tão bem.
Natais rápidos de muita gente que de muitas maneiras mostrava que não queria mais ou que não queria estar. Aniversários esquisitos. Páscoas desconfortáveis onde o meu refúgio - e mesmo assim, houve alturas em que me foi tirado - era o meu quarto.
Gritos. Discussões. Eu fazer de mensageira. Indirectas. "Porque é que não pedes ao teu pai?". "A tua mãe é isto e aquilo".
Sem relação. Sem poder quebrar por sentir que era amparada. Quando a obrigatoriedade cai, vêm os afectos, a realidade.
E a verdade é que quem se gosta não se junta só porque tem que ser.
Eu não queria esta família.
Apesar. Apesar de ainda ontem ter visto no meu irmão a frescura e beleza de quem não sentiu os cortes na pele. Sorria. Lindo. Anjo de luz. A iluminar. A fazer o coração de todos a funcionar. O João, que me recebeu, que apareceu sempre no último momento. No último momento que me salvou por não ter mais ninguém. Aquele último momento onde a culpa me fazia sentir que tudo o que havia mal no mundo era por eu não ser suficiente aos olhos de quem não me parecia amar.
Tudo o resto, injustamente mas naturalmente, enterrado algures. Enterrado com tristeza, amargura, solidão, medo.
Não queria esta família.
Mas.
Mas, quando entro no carro com a Irene, antes de me sentar no lugar do condutor, bafejo o vidro dela e desenho um coração como o meu pai me desenhava quando a minha mãe me levava para longe com ela, porque "tinha que ser".
Mas, quando no outro dia olhei para a Irene vi que o nariz dela parece um bico de passarinho e, como a minha mãe me fazia, pus-lhe o dedo horizontalmente por baixo e disse-lhe "descansa o bico".
Mas, quando ontem fui adormecê-la li o livro que a minha avó que me ensinou a amar e a brincar me deu.
O livro em que ela escreveu uma dedicatória talvez por saber já que me ia deixar tão cedo. O livro onde até escreveu à mão os números para eu saber também como se escreve à mão.
Que cuidado. Que carinho.
E hoje, hoje veio a voz da minha outra avó querida quando me dizia "Olá" e punha Rosa à frente do meu nome. Nunca gostei, mas hoje tive saudades, muitas.
Pior é quando se tem saudades do que ainda existe e parece que temos as mãos agarradas ao coração que, se o largarmos, se parte.
Não queria esta família, mas é esta família que fez com que consiga partilhar convosco o que sinto, para que todos sintamos mais, sejamos mais e percamos menos.
Todos os dias.
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Irene |
Tenho um coração onde tu cabes e onde te podes espreguiçar à vontade.
a Mãe está aqui.
Obrigada, mãe, por teres guardado o livro da avó Irene.