Eu sei que ama profundamente a sua neta. Eu sei que ficou 
contente quando a sua filha lhe pediu para tomar conta dela, as creches 
fecham, ou não existem, ou são caras, mas mesmo que assim não fosse, 
tomar conta de um neto é muito bom, os meus próprios pais consideram tal
 coisa um privilégio que ainda não podem ter.
Também
 sei que nem sempre acordamos de bom humor. Tenho a certeza que aquele 
café que pediu era mesmo muito necessário para acordar, pôr os 
pensamentos em ordem e começar o dia.
A sua 
neta não tem mais que 15 meses, pouco mais de um ano. Acordou, tomou o 
pequeno-almoço e agora veio à rua com a avó. Até é criança que gosta de 
carrinho, acredite ou não, eu tenho quase sempre que carregar com a 
minha às costas porque se recusa a andar no carrinho. Está cheia de 
energia. No entanto, a avó teve mesmo que parar para beber aquele café. 
De certeza que a neta compreende, apesar de ser tão pequena. Mas passado
 um bocadinho começa a ficar inquieta. Pensa "Que se passa? Porque é que
 não estamos a andar?". A avó parou o carrinho mesmo ao pé de si, mas a 
menina tem o as pernas da mesa ao nível dos olhos, e a avó não está a 
olhar para ela.
A menina lança um som de desagrado. Não é choro, não é grito, mas não são palavras porque ainda não consegue. 
O
 café ainda não fez o efeito pretendido, a avó está impaciente. A menina
 não precisa de café, acordou bem disposta, tem 15 meses, já anda, quer 
correr e estatelar-se no chão e aprender a não cair. Mas a avó não está a
 perceber isso, e dá-lhe algo para as mãos, um pacote de açúcar, um 
molho de chaves.
Cara avó, lembra-se certamente
 de quando os seus filhos eram pequenos. Nada fica muito tempo nas mãos 
dos pequenos, a não ser aquele cotão sujo que teima em aparecer, a 
sujidade das unhas e das preguinhas das mãos. Vai tudo ao chão.
Por
 qualquer razão, a avó não antecipou isso. Achou que a menina ia segurar
 no objecto e entreter-se por tempo indeterminado, e que além do café, a
 avó conseguia ainda ler a TV Guia e fazer o Euromilhões. Mas não. Ela 
mandou tudo ao chão, e avó, que tinha a certeza que isso não ia 
acontecer, irrita-se.
"Estás parva, tu?"
O
 meu irmão era parvo quando fazia caretas para as fotografias. Eu era 
parva quando gastava o dinheiro do almoço em rebuçados. A sua neta não é
 parva, nem está a ser parva, está a tentar dizer-lhe que se quer ir 
embora.
"És feia. És má".
A
 sua neta não é feia. É uma menina bonita, loirinha e de olhos azuis, e 
veste um vestidinho mesmo daqueles só de passeio. Talvez a avó nem 
queira levá-la a brincar para não sujar o vestido. Não é má, não há 
qualquer ponta de maldade naquilo que ela está a fazer, há uma 
necessidade muito básica, ancestral até, de chamar a sua atenção, de 
dizer que está ali, de mostrar que precisa de ser cuidada. Não é essa 
afinal a função da avó?
O pão, o banho, o leite, vestir e despir, se calhar qualquer um faz, mas a avó deve cuidar. Devia cuidar.
"Se não paras, vou-te bater"
Aqui a menina já estava a chorar a sério. Lembra-se, avó?
Daqui
 a uns anos a avó vai ser muito velhinha e vai precisar de cuidados. Se 
calhar a neta até vai pagar a uma enfermeira, que lhe dê o banho, mude a
 roupa, trate da casa. Mas a avó não vai querer estar sempre acompanhada
 por uma pessoa estranha. Vai querer a neta de quem cuidou. 
Na
 cama onde estiver, de preferência ainda lúcida, a sua neta vai ignorar a
 sua tentativa de conversa enquanto bebe o seu café. São as suas últimas
 palavras, mas que importa isso, é só uma velha, não diz coisa com 
coisa. Se a avó fizer um bocadinho mais de barulho, a neta vai ficar 
impaciente e mandá-la calar. Se a avó não parar mesmo, a neta vai partir
 para o insulto. Feia e má não são maus o suficiente, dirá uns nomes 
piores. E se nada disto resultar, vai ameaçar bater.
Ou
 então nada disto vai acontecer, porque no caminho da vida a menina vai 
perceber que não é assim que tratamos as pessoas de quem gostamos.
O
 respeito é uma relação que se cria, com duas pontas. A avó tem de 
respeitar a neta, só assim a neta lhe terá respeito. A avó não pode 
ameaçar bater na neta, senão a neta vai achar que podemos bater nos mais
 fracos, nos mais pequenos, ou apenas naqueles que não compreendemos. Ou
 mesmo na própria avó.
Quer a avó, quer a neta 
têm o direito de ter dias maus. Mas a avó já aprendeu tanto com a vida, 
será que não aprendeu que não devemos descarregar as nossas frustrações 
nos outros? Ou vá, pelo menos naqueles de quem gostamos?
Provavelmente
 a avó pensa que ela própria também levou palmadas e não foi por isso 
que ficou mal. Bom, avó, o facto de pensar assim comprova precisamente o
 contrário: ficou mal e quer que os filhos, netos, bisnetos e por aí 
fora tenham sempre a mão mais preparada para bater do que para abraçar. 
Algo está seriamente errado nisso.
Respire 
fundo, avó. Conte até dez. Ignore os olhares das pessoas do café que 
devem estar a achar que a sua neta é mimada: também eles têm filhos e 
netos e sabem como é. Quando acabar de contar, explique à neta que são 
só mais 5 minutos e que depois vão fazer o que ela quer. Ela também lhe 
está a fazer companhia a si. Ela gosta de si. Aproveite enquanto dura.
Atenciosamente,
Uma
 mãe que acabou de deixar a sua bebé na creche e que dava o braço 
direito para ter a avó (a da sua filha e não a senhora, obviamente) a 
cuidar da filha 
Vanessa Borges
A Vanessa, mãe de uma menina de 21 meses, escreveu-nos hoje, dizendo que seguia o nosso blogue, gostava dele e que nos achava graça. Resolveu partilhar o que lhe tinha acontecido hoje de manhã. Disse-nos, com muita piada, que até podíamos usurpar o texto, dizendo que era nosso, num dia em que estivéssemos menos inspiradas. Hoje não estou menos inspirada, mas este texto acertou em cheio na mouche. Esta manhã custou-me particularmente ir levar a Isabel à creche, apeteceu-me prolongar o fim-de-semana de amor, atenção, carinho, gargalhadas, brincadeiras. Estando mais frágil e cheia de saudades da minha filha, li este texto num trago. Custou-me cada palavra. Obrigada pela partilha, Vanessa. JPB

 












