Nunca
quis ser mãe. Foi
algo que sempre disse a mim mesma para não ter que lidar mais com o assunto nem
com os constrangimentos de talvez não me sentir apta o suficiente para ter
alguém a crescer dentro de mim e a ser
cuidado por mim. Não sabia cuidar, tinha medo de não saber amar. Não estava
assim tão longe da realidade.
Mais tarde, tudo me pareceu
satisfatório nesse sentido. Na vida nada me estava a saber como deve ser.
Parecia tudo cinzento e sempre de noite num armazém vazio repleto de pequenas
caixas do meu eu antigo. Estava casada e pareceu-me o próximo passo. Pensei que
“a ser mãe, tavez seja agora” que
nada me sabe a nada e nada me parece estar a atrapalhar.
Engravidámos. E não houve um único
dia dos 9 meses que não tivesse representado uma oportunidade para me afeiçoar
à ideia de vir a ser mãe e de ser já uma mulher. Pareceu-me muito tempo, mas
talvez tenha sido o suficiente. São 9
meses em que se gera uma criança, mas em que se começa a gerar uma mãe. Que
mãe?
No
dia do parto, a mãe não estava lá.
A mãe estava algures antes de terem começado as contracções e de se ter
apercebido que tudo isto era a sério. Apesar das noites sem dormir, das dores
enormes de barriga, das dores de costas que não a deixavam respirar e rir a
determinada altura, a mãe saiu.
Quando a filha nasceu, estava lá o
pai. A mãe não sentiu nada. A mãe
tinha saído. O corpo sentiu a perda de algo, mas o coração não ganhou nada. A
cabeça perdeu-se em ansiedade e medo e decidiu desligar. Senti nada.
Senti um pouco quando o Frederico a
pegou ao colo. Senti como se o meu pai me tivesse abraçado. A menina ao colo do pai, mas não era necessariamente a minha filha.
Dois dias e duas noites de recuperação
de filme de terror de algo que tem tudo para correr naturalmente. No meio de
angústia e de confusão, os sentimentos eram nenhuns. O teatro apresentava-se
como necessário, não fosse “o que é que os outros vão pensar” algo sempre
demasiado presente.
Quis ir para casa. Não queria mais
hospital, queria começar a vida, mas senti-me analfabeta. Tinha à minha frente aquele que sempre me disseram que iria ser o melhor
livro do mundo, mas não sabia lê-lo. Não sabia sequer manuseá-lo. E pior, ele
chorava e precisava de mim.
Roboticamente fui imitando o que se
vê aqui e ali. O que terei gravado em mim algures de ter visto algo com o meu
irmão Pedro, mas nem uma fralda me achei capaz de trocar no hospital. Tive de
chamar o enfermeiro.
Comecei abaixo de 0. Comecei sem
sentir aquele amor de que todas as mães falam. Ou quase todas. A minha falou do
parto ter sido de ventosa. Como o da minha filha.
Aos poucos fui-me permitindo “ser
ridícula”. Comecei a falar com aquele pedaço de carne que respirava. Comecei a
cantar para me acalmar, na esperança de o acalmar também e, devagarinho, por
entre muitas lágrimas de dor enquanto amamentava, fui sentido que estava certo.
Que o meu corpo também dava leite e que
estava preparado para ser mãe. Não só mulher que gera vida, mas mãe também.
Ver a minha filha a crescer
alimentada por mim e por mim (as duas “eu”: cabeça e corpo) foi-me dando força
para acreditar no meio das milhares de batalhas que ia travando na minha cabeça
entre ser capaz ou de não ser capaz e qual é a voz do instinto maternal? Porque é que erro tanto? Porque é que é
tudo tão difícil sempre para mim? Merecia eu ser mãe?
Adormecer para as sestas era um
terror. Dar a comida. Manter-me acordada. Amamentar de noite. Adormecê-la de
noite. Não me poder afastar dela. Vivi os primeiros meses sobrevivendo e sem
saber dançar, sem conseguir ouvir. Algo
me impedia de chegar a mim e, por isso, de ver a minha filha.
Seis
meses depois voltei a trabalhar, mas não tinham o meu regresso preparado. Não tinham pensado se voltava a
antena ou não e, tendo saído de um programa das manhãs, percebi que já não
importava como equipa de palco, mas talvez tivesse de me contentar com os
bastidores. “Eu adapto-me a tudo.”.
Não me adaptei. Fiquei zangada por
não se terem lembrado de mim, não terem pensado em mim, por parecer que tinham
seguido sem mim e pensei que aquele tempo ali não interessava e ainda menos
estando a minha filha sem mim. Propus um ano sem vencimento e foi-me dado.
Um
ano e seis meses em casa com
a minha filha (e marido). Uma dádiva, um privilégio, mas aterrrorizante.
Secretamente desejava que o pedido da licença sem vencimento não fosse
aprovado. Como se a minha “culpa” de não estar com a minha filha fosse atenuada
com um “tem que ser”, mas não.
Agora tinha um ano para me dedicar em
exclusivo a isto de ser mãe do qual não sei nada. Um ano.
Percebi
os truques: passear, muito. Ficar em casa dá lugar a um cansaço mental ao qual
não tenho resistência e expunha a minha filha à minha falta de sanidade. Ver
pássaros, ouvir as árvores, pô-la a brincar com pedrinhas. Estava a protegê-la
de mim, do ambiente morto lá de casa e a pedir por tudo que o tempo passasse
rápido.
O normal de estar em casa
instalou-se. Tudo era muito, mas mais 10 kilos de bolachas em cima, de muitas
sestas e de não ser eu mais do que um cadaver que cuida com amor da minha
filha.
O amor surgiu. Surgiu pelo meio das
muitas músicas que lhe cantei, mas surgiu à séria, quando comunicamos
inequivocamente para mim: ela mamava,
pisquei duas vezes os olhos para brincar com ela e ela piscou de volta. Tinha
ali a minha filha, a minha pessoa.
Agora é a sério. Tenho que a mostrar
diariamente o quanto a amo. Não vou descansar até ela saber. O meu maior tendão
de Aquiles é não saber reconhecer o que é amor. Amor por mim. Vou amá-la tanto que isso vai definir-lhe o
que é amor. Vou amá-la de maneira a que ela floresça.
E tenho amado com o meu corpo todo,
com a minha cabeça, lábios, mãos, ouvidos, nariz, tudo. Em todos os pormenores
há amor de mim para ela.
Depois
desse encontro, voltei a trabalhar. Não havia tanto tempo para amar tanto, mas
a minha cabeça arejou. O amor respirado é um amor que me parece mais saudável.
Com idas ao parque, mas já não como sobrevivência. Sim como escolha. Só por
ela. A Irene só foi para a escolar aos dois anos e meio.
No trabalho, tudo igual. Nenhum
projecto em especial para mim que, quando saí do ar, o programa que fazia era o
meu nome. Já sabia quando engravidei que ia perder o meu tempo. Convenci-me que tinha morrido para a radio
e também para a televisão. Talvez tenha morrido no formato anterior porque essa
Joana também desapareceu. Ou melhor: sofreu um upgrade.
Esta nova Joana que procura
diariamente maneiras de mostrar à filha o que é o amor também procura
diariamente o que é ser. Quem é a Joana
agora que não é o centro das atenções? Agora que tem alguém que é tão
importante na vida dela e para sempre?
A Joana que é mãe (e que ser mãe
significa ser mulher, nunca entendi bem a separação) separou-se do pai da
filha. Sentiu que para amar mais e melhor que precisava de iluminar a casa,
deixar entrar ar, libertar de coisas que a prendessem a uma determinada imagem
que já não tinha de si própria. Afinal de contas, tudo flui nela.
A Joana merece o mundo.
A mãe da Irene não estava quando ela
nasceu.
Existe mais por ter descoberto o que é o
amor.