Não estava à espera disto. Nunca se está.
Estava em estúdio, o Frederico conta-me que a Irene acordou da sesta, ficou molinha na sala e que adormeceu no sofá. Enviou-me vídeos para que ambos pudéssemos conversar sobre a perfeição de menina que tínhamos criado. Vê-la e ouvi-la respirar (raras as vezes em que a vemos a dormir), ver os pezinhos dela a mexer, os dedinhos. Foi fabuloso. Estávamos contentes por ela estar a descansar.
Recebo uma chamada. Era o Frederico. Estava muito aflito. Não descrevo o quanto porque teria de ser ele a falar sobre isso. Não consegui perceber o que dizia. Achei que estavam os dois a brincar comigo porque ouvia-o e a ela lá ao fundo também. Finalmente consegui perceber "anda... correr... para casa... Irene... espumar da boca...". Corri mais que os jornalistas de rádio quando têm de entrar em directo e a impressora não cooperou. Corri tanto que, quem me viu passar, percebeu que não era para comentar, nem falar comigo.
Pousei os meus phones e o guião na minha secretária e saí a correr tipo Forrest Gump. Perguntaram-me os meus colegas: "O que se passa, Joana?". Só tive tempo de responder "não sei" e o "i" já foi fora da porta, a correr para ir para casa. É certo que moro perto do trabalho. A 3 minutos a pé, mas pareceu-me uma eternidade. Mais tarde vim a perceber que tinha levado o carro ontem e que provavelmente teria chegado mais rápido se me tivesse lembrado disso. Ou, pelo menos, não me teria metido por um corredor/atalho em que decidi ignorar que estivesse fechado com uns avisos e que decidi percorrer na mesma. As minhas sandálias e os meus pés ficaram atolados em lama, mas não havia outra hipótese. Estava-me a borrifar se ficava cheia de lama até aos joelhos, percorrer tudo para trás e escolher outro caminho só para não me sujar não era uma opção.
Ainda a caminho do corredor liguei para o 112. O meu corpo ainda não se tinha apercebido do que se estava a passar. Estava no modo de sobrevivência. Liguei. Demoraram uma eternidade a atender (uns 6 ou 7 toques - como é que é possível????) e depois reencaminharam para a parte de saúde. Era uma senhora, com uma voz doce. Desabei. "A minha filha está a espumar-se da boca e está roxa". Não lhe dei o número do Frederico porque sabia que ele não iria conseguir falar ao telefone.
Demoraram a chegar. A porcaria da minha rua não aparece no GPS de ninguém. Que perigo. Já escolhemos uma aqui perto para dar agora. Quando cheguei, cheia de lama, o Frederico entregou-me a Irene, já a chorar muito alto e peguei nela ao colo. Instintivamente comecei a cantar umas músicas foleiras que ela gosta para se acalmar. Reparei que ela não mexia os braços. Dei-lhe o coelhinho dela, que ela queria e ela não o conseguia agarrar.
Interiormente sabia que provavelmente isto era o que me acontecia quando eu era pequenina. Talvez daí não estar inconsciente. Seria pior se tivesse visto a Irene como o Frederico viu, como se tivesse partido, sem poder fazer nada.
Chegou a ambulância. Mediu-se a febre. Fez-se um pedido grande para ir para o São Francisco (é onde temos a nossa pediatra, etc.) e lá fui com ela. Sempre a tentar tornar o momento engraçado, mesmo sem ter a certeza que ela estaria a assimilar alguma coisa. Ela respondia que sim e não por entre o choro às minhas perguntas, devia estar a assimilar:
- Necas, estamos a andar de ambulância!!! Aquela que faz tinoninoni e para onde vai a ambulância? Para o hospital. Que giro, Necas!!
Ela acenava que sim com a cabeça, nos solavancos na ambulância, amparada pelas minhas mamas, enquanto mamava. Só assim parava de chorar. Continuava sem mexer o braço. Eu tentei convencer-me que seria espectável. O corpo naturalmente deve ter-lhe dado um ansiolítico qualquer.
Chegámos. Rapidamente entrámos para as emergências. Pulseira de muito urgente. Ben-U-Ron para o bucho (era o genérico que eu vi) e a Dra. atendeu-nos. Era mesmo o que a mãe teve quando era pequena: convulsões febris. Herdou de mim. Porém, tínhamos de fazer análises para despistar outras hipóteses como ausências de nutrientes ou excessos, segundo percebi.
As análises. O terror das análises. Fizemos uma vez análises e foi picada dezenas de vezes. Tive de proibir que lhe tocassem mais. Contei isso
aqui. A Dra. disse que aqui seria diferente, que picam mais vezes miúdos e todos os dias. Não tinha outra hipótese. Era como a lama. Tinha de ser.
O Frederico perguntou se estaria dispensado. Claro que sim. Nem repararia se ele iria lá estar ou não. Eu tinha que estar. A Dra. disse que podia não ir nenhum de nós, mas nem pensar. Prefiro ficar eu impressionada com a dor dela do que ela sentir que a mãe a deixou sozinha para que lhe fizessem uma cosia que dói.
Desta vez tentaram tirar sangue noutro sítio. Não conseguiram. É realmente difícil tirar sangue à Irene e ainda para mais estando com febre. Tínhamos de repetir dali a pouco. Os gritos, os choros. Eu a explicar-lhe o que se estava a passar e para quê, dizer que quando estivesse boa que íamos fazer as coisas preferidas dela. Só me apetecia pedir-lhe desculpa. Desculpa por não haver uma maneira menos imbecil de saber o que se passava com ela e dela ter de passar por aquilo: um garrote, prenderem-lhe o braço e picarem algumas vezes para tirar sangue.
Voltámos para a sala de espera. Necas sempre na maminha, sempre a pedir maminha. Esperámos meia hora e lá fomos outra vez, agora com menos febre. Fomos as duas.
A Irene já nervosa a entrar na sala. "Pulseira (garrote), não, menino! Menino!!! Menino!! Menino???". Começou a entrar a agulha e a Irene grita várias vezes "Pede desculpa, menino!! Pede desculpa!". Choro agora e chorei na altura. Obriguei-o a pedir desculpa. Claro que era para o bem dela, mas a Irene tinha de perceber que sim, quando se magoa alguém, se pede desculpa e que o menino era amigo.
Custou-me dizer-lhe que podia descansar e fechar os olhos, que estava tudo bem e ela fazê-lo. Deitei-me com ela na maca da sala de espera a dar-lhe maminha deitada. Acabou por adormecer.
Os resultados saíram rápido: tudo bem com as análises dela. Níveis mais baixos de oxigénio e de dióxido de carbono, mas associaram a estar a chorar muito. Era mesmo verdade, a Irene tem convulsões febris. E o que a minha mãe sofreu com isto. Quando ela fala sobre isto ainda hoje parece que fala de uma das piores coisas pelas quais já passou. Que é aflitivo e muito. Eu já suspeitava que ela tinha isto. Ninguém me deu ouvidos na altura, mas eu já sabia. Escrevi sobre isso
aqui.
O mais provável é que ela faça isto sempre que haja uma subida rápida da temperatura. Se for como eu, é o primeiro sintoma de doença com febres altas. Levamos uma bisnaga com um relaxante para lhe dar nas próximas convulsões. Está tudo bem. A Dra. que nos atendeu rapidamente percebeu que era a nossa primeira filha. Fizemos milhares de perguntas e todas respondidas com paciência. Que maravilha.
Viemos para casa. Irene a dizer piadas. Assustada com tudo, mas já a dizer piadas. A família estava a curar-se com o humor.
Ao adormecê-la ouvi um "mãe, anda dormir comigo, mãe" e só não fui porque tinha outra pessoa que ainda não tinha sido abraçada o dia inteiro e que estava bem mais assustada. Faltava dar beijinhos ao Frederico. A pizza familiar que tínhamos pedido não resolveu tudo.
Ele acabou agora de lhe dar um beijinho na testa e ela disse "obrigada, pai". Parece que é a gozar.
Obrigada por me deixarem desabafar.