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11.01.2017

No dia do parto, a mãe não estava lá.

Nunca quis ser mãe. Foi algo que sempre disse a mim mesma para não ter que lidar mais com o assunto nem com os constrangimentos de talvez não me sentir apta o suficiente para ter alguém  a crescer dentro de mim e a ser cuidado por mim. Não sabia cuidar, tinha medo de não saber amar. Não estava assim tão longe da realidade.

Mais tarde, tudo me pareceu satisfatório nesse sentido. Na vida nada me estava a saber como deve ser. Parecia tudo cinzento e sempre de noite num armazém vazio repleto de pequenas caixas do meu eu antigo. Estava casada e pareceu-me o próximo passo. Pensei que “a ser mãe, tavez seja agora” que nada me sabe a nada e nada me parece estar a atrapalhar.

Engravidámos. E não houve um único dia dos 9 meses que não tivesse representado uma oportunidade para me afeiçoar à ideia de vir a ser mãe e de ser já uma mulher. Pareceu-me muito tempo, mas talvez tenha sido o suficiente. São 9 meses em que se gera uma criança, mas em que se começa a gerar uma mãe. Que mãe?

No dia do parto, a mãe não estava lá. A mãe estava algures antes de terem começado as contracções e de se ter apercebido que tudo isto era a sério. Apesar das noites sem dormir, das dores enormes de barriga, das dores de costas que não a deixavam respirar e rir a determinada altura, a mãe saiu.

Quando a filha nasceu, estava lá o pai. A mãe não sentiu nada. A mãe tinha saído. O corpo sentiu a perda de algo, mas o coração não ganhou nada. A cabeça perdeu-se em ansiedade e medo e decidiu desligar. Senti nada.

Senti um pouco quando o Frederico a pegou ao colo. Senti como se o meu pai me tivesse abraçado. A menina ao colo do pai, mas não era necessariamente a minha filha.

Dois dias e duas noites de recuperação de filme de terror de algo que tem tudo para correr naturalmente. No meio de angústia e de confusão, os sentimentos eram nenhuns. O teatro apresentava-se como necessário, não fosse “o que é que os outros vão pensar” algo sempre demasiado presente.

Quis ir para casa. Não queria mais hospital, queria começar a vida, mas senti-me analfabeta. Tinha à minha frente aquele que sempre me disseram que iria ser o melhor livro do mundo, mas não sabia lê-lo. Não sabia sequer manuseá-lo. E pior, ele chorava e precisava de mim.

Roboticamente fui imitando o que se vê aqui e ali. O que terei gravado em mim algures de ter visto algo com o meu irmão Pedro, mas nem uma fralda me achei capaz de trocar no hospital. Tive de chamar o enfermeiro.

Comecei abaixo de 0. Comecei sem sentir aquele amor de que todas as mães falam. Ou quase todas. A minha falou do parto ter sido de ventosa. Como o da minha filha.

Aos poucos fui-me permitindo “ser ridícula”. Comecei a falar com aquele pedaço de carne que respirava. Comecei a cantar para me acalmar, na esperança de o acalmar também e, devagarinho, por entre muitas lágrimas de dor enquanto amamentava, fui sentido que estava certo. Que o meu corpo também dava leite e que estava preparado para ser mãe. Não só mulher que gera vida, mas mãe também.

Ver a minha filha a crescer alimentada por mim e por mim (as duas “eu”: cabeça e corpo) foi-me dando força para acreditar no meio das milhares de batalhas que ia travando na minha cabeça entre ser capaz ou de não ser capaz e qual é a voz do instinto maternal? Porque é que erro tanto? Porque é que é tudo tão difícil sempre para mim? Merecia eu ser mãe?

Adormecer para as sestas era um terror. Dar a comida. Manter-me acordada. Amamentar de noite. Adormecê-la de noite. Não me poder afastar dela. Vivi os primeiros meses sobrevivendo e sem saber dançar, sem conseguir ouvir. Algo me impedia de chegar a mim e, por isso, de ver a minha filha.

Seis meses depois voltei a trabalhar, mas não tinham o meu regresso preparado. Não tinham pensado se voltava a antena ou não e, tendo saído de um programa das manhãs, percebi que já não importava como equipa de palco, mas talvez tivesse de me contentar com os bastidores. “Eu adapto-me a tudo.”.

Não me adaptei. Fiquei zangada por não se terem lembrado de mim, não terem pensado em mim, por parecer que tinham seguido sem mim e pensei que aquele tempo ali não interessava e ainda menos estando a minha filha sem mim. Propus um ano sem vencimento e foi-me dado.

Um ano e seis meses em casa com a minha filha (e marido). Uma dádiva, um privilégio, mas aterrrorizante. Secretamente desejava que o pedido da licença sem vencimento não fosse aprovado. Como se a minha “culpa” de não estar com a minha filha fosse atenuada com um “tem que ser”, mas não.

Agora tinha um ano para me dedicar em exclusivo a isto de ser mãe do qual não sei nada. Um ano.

Percebi os truques: passear, muito. Ficar em casa dá lugar a um cansaço mental ao qual não tenho resistência e expunha a minha filha à minha falta de sanidade. Ver pássaros, ouvir as árvores, pô-la a brincar com pedrinhas. Estava a protegê-la de mim, do ambiente morto lá de casa e a pedir por tudo que o tempo passasse rápido.

O normal de estar em casa instalou-se. Tudo era muito, mas mais 10 kilos de bolachas em cima, de muitas sestas e de não ser eu mais do que um cadaver que cuida com amor da minha filha.

O amor surgiu. Surgiu pelo meio das muitas músicas que lhe cantei, mas surgiu à séria, quando comunicamos inequivocamente para mim: ela mamava, pisquei duas vezes os olhos para brincar com ela e ela piscou de volta. Tinha ali a minha filha, a minha pessoa.

Agora é a sério. Tenho que a mostrar diariamente o quanto a amo. Não vou descansar até ela saber. O meu maior tendão de Aquiles é não saber reconhecer o que é amor. Amor por mim. Vou amá-la tanto que isso vai definir-lhe o que é amor. Vou amá-la de maneira a que ela floresça.

E tenho amado com o meu corpo todo, com a minha cabeça, lábios, mãos, ouvidos, nariz, tudo. Em todos os pormenores há amor de mim para ela.

Depois desse encontro, voltei a trabalhar. Não havia tanto tempo para amar tanto, mas a minha cabeça arejou. O amor respirado é um amor que me parece mais saudável. Com idas ao parque, mas já não como sobrevivência. Sim como escolha. Só por ela. A Irene só foi para a escolar aos dois anos e meio.

No trabalho, tudo igual. Nenhum projecto em especial para mim que, quando saí do ar, o programa que fazia era o meu nome. Já sabia quando engravidei que ia perder o meu tempo. Convenci-me que tinha morrido para a radio e também para a televisão. Talvez tenha morrido no formato anterior porque essa Joana também desapareceu. Ou melhor: sofreu um upgrade.

Esta nova Joana que procura diariamente maneiras de mostrar à filha o que é o amor também procura diariamente o que é ser. Quem é a Joana agora que não é o centro das atenções? Agora que tem alguém que é tão importante na vida dela e para sempre?

A Joana que é mãe (e que ser mãe significa ser mulher, nunca entendi bem a separação) separou-se do pai da filha. Sentiu que para amar mais e melhor que precisava de iluminar a casa, deixar entrar ar, libertar de coisas que a prendessem a uma determinada imagem que já não tinha de si própria. Afinal de contas, tudo flui nela. 

A Joana merece o mundo.

A mãe da Irene não estava quando ela nasceu.


Existe mais por ter descoberto o que é o amor.






Fotografia - Joana Hall


a Mãe é que sabe Instagram