[A carta que sonho que me escrevas, filha]
Tenho saudades tuas, mãe
Saudades daqueles tempos em que me passavas a mão pelo cabelo até eu  adormecer. Ou de quando me fazias cócegas com beijos nos pés. De quando  me lias histórias, à noite. Às vezes pedia-te só mais uma, para  continuar a ouvir o som da tua voz, calma e alegre. Do teu cheiro  inconfundível. Deixaste de pôr perfume quando eu nasci, quando muito  usavas o meu, por isso ainda hoje sei de cor a que cheira aquela  camisola creme de lã que usavas quando me pegavas ao colo.
Tenho saudades, mãe
De quando tudo era uma festa. Vestíamos um casaco quente e íamos à rua  pisar as folhas amarelas. Cantávamos uma música inventada no momento nas  nossas viagens de carro. Tudo era permitido. Misturar numa frase "pão"  com "balão", para rimar. Rias-te, rias-te bem alto. E eu fazia a minha  melhor careta só para te ver feliz.
Tenho saudades, mãe
De quando me deixavas pintar-te a ponta do nariz com a tinta vermelha e  nem sequer ralhavas comigo. De quando me ajudavas a fazer bonecos com  plasticina que improvisaste no momento. De quando os fins-de-semana não  acabavam nunca, entre livros, cambalhotas no colchão e bolas de sabão.
Tenho saudades, mãe
Até de quando ralhavas comigo. Porque até aí eu vi uns olhos meigos, que  me queriam bem. Nunca senti raiva vinda de ti. Só amor. Sinto saudades  até dos momentos em que fiquei doente, para poder estar no conforto do  teu colo horas a fio.
Tenho tantas saudades, mãe
De olhar os passarinhos com a maior das alegrias e de ver em ti a mesma  satisfação por me mostrares o mundo. De quando me deixavas saltar nas  poças de água e até saltaste comigo. De quando me deixavas ajudar-te a  fazer o jantar.
Oh mãe, tenho saudades
Da nossa cumplicidade, do nosso apego, das horas que tardavam enquanto  não nos reencontrássemos. Quando me ias buscar à escola, mostrava-te que  estava feliz, mas nada, nada me deixava mais feliz do que ver-te. Sabia  que as próximas horas iam ser nossas.
Tenho saudades tuas, mãe, e daqueles primeiros anos da minha vida. E dos que se seguiram.
Tu não sabes, mas eu lembro-me de tudo. Ficou-me gravado no peito, na  pele e em tudo aquilo que eu sou hoje. Mesmo quando te vi errar,  mostraste-me o que era real e humano. Um dia vi-te chorar e, assim que  me viste, limpaste as lágrimas. Ali, a reergueres-te, por mim.
E tu sempre achaste que não estavas a dar tudo, sempre te  culpabilizaste, sempre quiseste ser mais. Mãe, garanto-te que não podias  ser mais. Foste tudo. Ainda o és, por detrás dessas rugas e dessas mãos  de veias em socalco, por onde corre o sangue de toda uma vida. Tenho  tantas saudades, mãe.
Da tua filha, Isabel
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